O ROMANCE DE GABO E MERCEDES CONTADO POR ELE MESMO
- Lucídio José de Oliveira
- 11 de mai.
- 7 min de leitura
Em “Viver para contar”, livro autobiográfico, Gabriel García Márquez narra um episódio romântico vivido por ele próprio, aparentemente banal, quando tendo tirado uma moça para dançar na primeira noite de três bailes esplêndidos em tempo de férias na pequenina Sucre de sua mocidade, ouviu da jovem, na realidade uma menina ainda adolescente, uma resposta que ele considerou misteriosa a uma pergunta que lhe fizera.
Na verdade, tratava-se de uma proposta de casamento, quem sabe escondendo uma “cantada” dessas se colou, colou. A resposta da moça deixou-o desarmado: “Meu pai vive dizendo que está para nascer o príncipe que vai se casar comigo”. García Márquez não se dera ao trabalho de perguntar até então quem era a moça, filha de quem nem com quem. Sequer o seu nome sabia. Achou-a bonita, mas sobretudo sigilosa, foi o que deixou escrito, o que lhe dera ânimo suficiente para a proposta, a sério segundo ele, logo na segunda música que estavam dançando juntos.
A narração continua com o escritor, agora textualmente: “Dias depois, eu a vi atravessar o calçadão da praça debaixo do sol bravo do meio-dia, com um radiante vestido de organdi levando pela mão um menino e uma menina de seis ou sete anos.” - São meus, disse morrendo de rir, sem que nada lhe tivesse sido perguntado. E com tanta malícia, que o futuro escritor começou a suspeitar que sua anterior proposta de casamento “não tinha sido levada pelo vento”.
Da encantadora personagem não mais se ocupa García Márquez nas 114 páginas seguintes do livro. É quando resolve contar um novo episódio de dança, da mesma maneira gracioso, envolvendo a mesma moça que até então não nos havia sido apresentada. Dela, os leitores ainda não lhe sabem o nome, muito menos filha de quem. Mas chega, por fim, no livro, o momento da apresentação: “Naqueles dias de boa sorte encontrei por acaso Mercedes Barcha, a filha do boticário de Sucre, a quem eu havia proposto casamento quando ela tinha treze anos de idade.”
Desta vez, o episódio se passa em Barranquilla. Conta que ela, depois dele muito insistir num encontro ocasional no meio da ria, aceitara o convite que reiteradamente lhe fizera para um baile no Hotel Prado. Velho hábito colombiano repetido em costumeiras e animadas manhãs de sol. Na época, o, escritor era apenas um jornalista em começo de carreira enquanto tentava cursar direito. Mercedes estudava em Medellín e só ia á Barranquilla para os encontros com a família que para lá se mudara por força da situação política opressiva da Colômbia daqueles dias.
García Márquez a descreve então como uma “moça divertida e amável comigo”, mas com “enorme talento de ilusionista”, o suficiente para “escapar de perguntas e respostas e não deixar nada esclarecido.” Aceitava ele a situação como sendo uma esperteza da moça, “uma estratégia mais piedosa que a indiferença ou a pura rejeição”. E se conformava (vejam só a que ponto chega a paixão) com a amizade mantida com o pai da moça, em ser visto e poder com ele se encontrar num bar em frente à sua casa, em frente à casa onde morava sua musa. E apesar da grande diferença de idade entre ambos, entre ele e o pai de Mercedes, a amizade chegou a ponto de a intimidade permitir o comentário do velho, ali mesmo na mesa do bar, que confessou sentir-se vangloriado com a frase atribuída a ele pela filha por ocasião do primeiro baile, a de que “estava pra nascer o príncipe etc etc...”.
Na manhã aprazada do domingo, semana do Natal, o tal baile no Hotel Prado, para o qual tinha convidado a moça. Ela foi sozinha, surpreendendo o jornalista que pensava que a mesma por lá só podia aparecer se fosse acompanhada do pai, como costumava ir para todos os lados. O escritor por seu lado se fez acompanhar de uma das irmãs que passava férias em Barranquilla. Mercedes dançou o tempo todo com tamanha e tal naturalidade que Gabo terminou por concluir que renovar, naquele momento, qualquer proposta de casamento poderia “parecer ridículo, senão indecoroso”. De todo modo, impulsivo que era, não deixou passar em branco a oportunidade de ouro. Ela dançava muito bem as canções da moda, confessa o escritor, e aproveitava esse dom para driblar com argúcia as propostas com que era acossada. Aconteceu então o inesperado. Ao meio-dia em ponto, estavam em mais uma dança. Ela espantou-se com a hora e o deixou plantado, sozinho, no meio do salão. Não aceitou inclusive que ele a acompanhasse até a porta para as despedidas de praxe. A irmã do escritor achou tudo tão estranho, ficou de tal modo perturbada que acabou por assumir a culpa pelo desfecho inesperado do encontro. García Márquez chegou a atribuir, na época, àquele mau momento uma das razões para a determinação repentina da irmã de entrar no convento das Salesianas de Medellín, onde ficou por mais de vinte anos, saindo apenas para viver seus derradeiros dias de solteirona com seus pais. Coisas da cabeça de García Márquez...
O escritor registra então, neste momento do livro, uma revelação surpreendente, ficando a dúvida se verdadeira ou fantasiosa: “Mercedes e eu, a partir daquele dia, acabamos inventando um código pessoal com o qual nos entendíamos sem dizer nada, e até sem nos encontrarmos.” Verdade ou pura fantasia, liberdade literária do mestre do realismo fantástico? A dúvida procede como se vai ver adiante. Eles se encontravam sim, porque queriam e decerto combinavam.
Logo no parágrafo seguinte a realidade se contradizendo com a fantasia, registra o escritor: “Tornei a ter notícias dela um mês depois, no dia 22 de janeiro do ano seguinte.” Mercedes passara no jornal onde ele trabalhava, o El Heraldo, deixando um recado seco (uma prova de que se encontravam...): “Gabo: mataram Cayetano!” Para o escritor, e para ela também, só havia um Cayetano no mundo: Cayetano Gentile, o velho amigo da cidade de Sucre, “médico iminente, animador de bailes e namorador por profissão”. O mesmo que promovera o tal baile, começo dessa história misteriosa de amor. O mesmo que iria lhe servir de inspiração para a sua fantástica e mundialmente famosa “Crônica de uma Morte Anunciada”, novela somente publicada após a morte da mãe do escritor, que não desejava ver uma história triste e dramática, envolvendo pessoas conhecidas, tornada pública em forma de romance. O amigo comum de Mercedes e Gabo havia sido brutalmente assassinado por dois irmãos de uma professora ultrajada que se envolvera no circuito amoroso de Cayetano, um rapaz na verdade gentil mas incorrigível namorador. Na novela, personalizado como Santiago Nasar, o desaventurado rapaz assassinado na porta de casa.
Mesmo tendo ainda pela frente mais de cem páginas para concluir suas memórias daquele tempo, o tempo que acaba quando de sua ida, ainda solteiro, à Europa como correspondente de jornal, o escritor só retorna a Mercedes em duas oportunidades. Em uma delas, quando volta a falar da moça nas últimas páginas de sua maravilhosa autobiografia. Persiste o mistério que cercava desde o início o romance entre os dois. E volta falar no final do livro. O jornalista-escritor está perto de completar 30 anos. A direção do jornal em que trabalha, agora em Bogotá, lhe faz o comunicado formal de que teria que viajar para Genebra, na Suíça, a fim de cobrir como enviado especial a Conferência dos Quatro Grandes do pós-guerra - Eisenhower, Bulgarin, Éden e Faure. Representantes da América, Rússia, Inglaterra e França, os Aliados vitoriosos.
Vencida a trabalheira que foi botar em dia a documentação para a viagem, a primeira dele ao exterior - Gabo, já homem feito, não tem ainda sequer a carteira de identidade, vejam só - e se despedir com dignidade da família em Cartagena, principalmente da mãe que ele adorava, tomou um ônibus que o levaria á cidade costeira, onde, por fim, pegaria o avião rumo ao Velho Mundo. O melhor, porém, é deixar agora a palavra com o próprio escritor. Vamos ler o que ele tem a dizer de Mercedes, na hora única e desesperadora da despedida:
“Horas depois, no táxi que me levava ao aeroporto de Barranquilla debaixo de céu ingrato mais transparente que qualquer outro céu do mundo, percebi que estava na avenida Vinte de Julho. Por um reflexo que há cinco anos fazia parte da minha vida, olhei para a casa de Mercedes Barcha. E lá estava ela, sentada no portal como uma estátua, esbelta e distante, e seguindo pontual a última moda daquele ano, com um vestido verde de rendas douradas, o cabelo cortado como asas de andorinha e a quietude intensa de quem espera alguém que não haverá de chegar”, exatamente com é descrito no livro. “Não pude evitar, diz ele, naquela quinta-feira de julho e uma hora tão madrugadora, a sensação de estremecimento que iria perdê-la para sempre, e por um instante pensei em parar o táxi para me despedir, mas preferi não desafiar uma vez mais um destino tão incerto e persistente como o meu”.
Continua o escritor: “No avião em pleno voo eu continuava castigado pelas agulhadas do arrependimento. Naquela época havia o bom costume de deixar no encosto do assento dianteiro tudo que fosse necessário para escrever de forma galante. Eram algumas folhas coloridas de cartas, com filetes dourados e envelopes no mesmo linho rosado, creme ou azul, e às vezes perfumado”. E prossegue: “Em minhas poucas viagens anteriores eu havia usado aquelas folhas para escrever poemas de adeus que transformava em aviõezinhos de papel e depois jogava ao vento ao descer do avião. Escolhi o azul-celeste e escrevi minha primeira carta formal para Mercedes, sentada no umbral de sua casa às sete da manhã, com o traje verde de noiva sem dono e o cabelo de andorinha incerta, sem nem ao menos suspeitar para quem ela tinha se vestido ao amanhecer.” Não pretendia ser mais do que cinco linhas para dar notícia oficial da minha viagem. No final, porém, acrescentou um PS, confessando que no instante de assinar a carta “me cegou como um relâmpago ao meio-dia, porque, pensava, se eu não receber resposta dentro de um mês, vou ficar na Europa para o resto da vida”... Na quinta da semana seguinte, quando voltou ao hotel de Genebra, depois de outra jornada inútil de desacordos internacionais, encontrou a carta com a resposta de Mercedes. O casamento estava selado. Com estas informações encerra Gabriel García Márquez a sua brilhante narrativa de “Viver para Contar”, o primeiro volume de suas memórias.
E para encerrar a minha, devo acrescentar que o jornalista tinha informado à sua mãe, na hora da despedida em Cartagena, que ficaria apenas duas semanas ausente, quando na realidade tudo estava programado para retornar após quatro dias, tempo que iria durar a Conferência. Ficou três anos, tempo suficiente para passar a limpo as notas que tinha alinhavado do esboço do que seria o seu mais famoso livro, “Cem Anos de Solidão”. O livro, acrescente-se, só iria tomar forma definitiva depois de o escritor já se encontrar devidamente casado com a mulher de toda a sua vida, a Mercedes Barcha, filha do boticário de Sucre, do seu tempo de rapaz. Casamento que se tornou possível e se fez realidade depois da resposta a seu bilhete escrito no voo de Barranguilha para a Europa. Mercedes foi peça fundamente para a composição do livro famoso e do sucesso internacional de Cabo, Gabriel García Márquez, a partir de então.
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